Outros contos: 04

Eu gostaria que você mande seus contos,suas ilustrações, e até videos que conte alguma historia para albertofontesblogueiro@gmail.com, e eu colocarei aqui, como fiz com este conto.



A perfeição







Nunca mais


AUTOR: Henrique Caldeira
A Poe, com as devidas desculpas.

A história que segue este adendo vem atormentando minhas noites insones há uma semana. Deus me perdoe, mas não vejo outra maneira de descarregar meu tormento e minha culpa senão transmutando-os em tinta sobre este papel que ilumino a vela. A luz elétrica resolveu abandonar as pobres almas residentes em meu quarteirão, relegá-la às trevas que acabavam de expulsar meu misericordioso Sol.

Tudo aconteceu na última segunda-feira, início do mês. Como de costume, fui aos correios remeter um livro para troca; uma maneira barata de sustentar meu vício. Mas dessa vez, remeter o livro era missão imperativa. Minha única chance de salvação.

Era uma tarde pesada, escura e muda de outono. As nuvens abafavam a claridade do poente. A rua deserta se encontrava molhada e marcada pelos passos enlameados dos raros transeuntes. Em minha mão, o envelope que embalava o livro maldito enrugava-se com a umidade excessiva do ar. Um corvo sentado na fiação elétrica parecia encarar meu passo apressando, parecia querer o envelope. A cerração ocultava meu destino à frente. Só percebi a claridade dos correios a poucos metros da entrada; sua forma, cores e movimento só percebi quando pisei no capacho. “Welcome”. Os guarda-chuvas que se dependuravam caoticamente pelo mastro horizontal da entrada pingavam gotas viscosas e ensopavam o chão branco da agência. A iluminação era mínima. Uma lâmpada incandescente piscava sôfrega nos fundos. A mesa de colas retinha toda a sujeira que os remetentes relapsos traziam da rua. Sua superfície borbulhava imundice como uma poça quente de alcatrão. A fila, por fim, era colossal. Inexplicavelmente colossal; extensa como a fila de israelitas em partida para Canaã. Obrigava-me, juntamente com outros pobres coitados, a receber na cabeça os últimos pingos daquela chuva de inverno. Tuc, tuc, tuc. Pingavam com ritmo angustiante, constante, pendular. Eu, impotente, recebia-os sem qualquer expressão. Um gato preto que vigiava a fila encarava-me; de cima de um barril e seguro da chuva, zombava da minha condição patética.

Ao aproximar-me dos caixas, percebi ali, imiscuído naquela mata inóspita de envelopes e selos, uma figura aterradora. Seu aspecto selvático repelia meus olhos medrosos. Seu olhar bestial, mesmo que focado em sua tarefa ordinária, mantinha meu corpo pronto para um fuga alucinada. Não sou, necessariamente, um covarde. Sou apenas lúcido e aprecio minha vida o suficiente para temer criatura tão apocalíptica. Aquele olhar de fera exótica – evito o lembrar – intimidaria o mais destemido dos caçadores; a expressão hostil do monstro, mesmo sem fitar-me diretamente, denunciava que este percebia-me como forasteiro em seu habitat qual um leão percebe as hienas enquanto dilacera a carne fresca de sua presa abatida. A transição visual da cola para o envelope, do envelope para a cola punha-me em perigo: a qualquer momento, os olhos sanguinários do animal poderiam saltar sobre meu corpo mortal, ridículo e o retalhar como o papel que retalhara a pouco.

Os condenados à minha frente iam se arrastando lentamente, com progresso quase imperceptível. A minha hora chegava e a possibilidade de ter que tratar com aquela criatura me apavorava. Os caixas iam liberando os destinatários como um tambor de revolver a cuspir apenas ar na roleta russa. O gigante permanecia ocupado e minha vez chegava; a bala continuava iminente no tambor.

Plim! Trinta e quatro, anunciou o painel vermelho sangue sobre minha cabeça. O destino ria de mim por trás daquela máscara de morte rubra. Era minha vez. Um caixa estava livre; O caixa estava livre, a porta guardada por cérbero era a única aberta. Os olhos do cão já estavam travados sobre mim. Impossível deixar alguém ir na minha frente; seria automaticamente trucidado pelo atrevimento. Enfim era a minha vez de apertar o gatilho...

A bala brutal me escolheu. Dirigi-me rumo à boca da fera. Na esperança fútil de que outro caixa pudesse me salvar, avancei a passos lentos como os de um escafandrista prudente. Esperança fútil, de fato. Alcancei-o sem nunca o olhar diretamente. Meu coração sobressaltado delatava minha fragilidade. Com o volume da voz meticulosamente dosado desafiei o silêncio: “Impresso simples para Guanhães. Registo módico, por favor”. A resposta veio instantaneamente através de uma voz terrível que irrompia das entranhas infernais da criatura qual o som escatológico da sétima Trombeta do Apocalipse; voz de monstro tão mortífero que atraiu meus olhos falecidos direto para sua face obscura: “Um e cinquenta o registro, três e sessenta e quatro os selos. Totaliza quatro e quatorze”. Mergulhei os dedos pela minha carteira apertada até que minhas mãos trêmulas me permitissem separar a quantia exata. Paguei e me evadi da agência com pressa desnecessária.

O ícone de minha maldição ficou abandonado ali, aos cuidados da quimera infernal. A deliciosa maçã envenenada que eu havia mordido há uma semana estava, finalmente, longe de meu alcance. Aquelas letras inglesas que atraíram para mim toda sorte de eventos horrorizantes, que transformaram em apavorante fantasia meu cotidiano banal já não poderão mais engolir-me para seu deslumbre soturno. Engano-me.

E o livro, sem sequer bulir, se senta imóvel na pálida bandeja de despache que há por sobre as caixas mais pesadas do depósito. E suas palavras tem toda a dor das de um demônio que sonha; e a luz da lâmpada incandescente dos fundos projeta-lhe a sombra no chão. E minh'alma, daquela sombra que jaz a flutuar no chão, libertar-se-á... nunca mais!



Não chore







Tobias e o Ataque Zumbi






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