Bebendo cerveja no Inferno
Carlos sempre foi um sujeito comum, com uma vida comum, em
uma cidade comum. Não era um santo, nem de longe, mas também não era um vilão
digno de um filme de ação. Quando sofreu um acidente de trânsito, seu primeiro
pensamento não foi sobre o paraíso ou o inferno, mas sim sobre a falta de
gasolina no carro. E foi assim que ele acabou no Inferno, de uma maneira
completamente inesperada e, sinceramente, inconveniente.
Assim que Carlos abriu os olhos, esperava ver fogo, enxofre,
talvez até umas criaturas medonhas com tridentes prontos para espetá-lo. Mas,
para sua surpresa, encontrou-se em algo que parecia uma versão decadente de um
aeroporto. Havia bancos de plástico, uma luz fluorescente irritantemente
brilhante, e um elevador ao fundo, de onde saíam pessoas com expressões
variadas, de perplexidade a pura indignação.
"Bem-vindo ao Inferno!" disse uma voz animada.
Carlos virou-se para ver um demônio de estatura média, usando uma camiseta
havaiana e chinelos, e um crachá que dizia "Lúcio – Atendimento ao
Condenado". Ele segurava uma prancheta e sorria de forma exageradamente
simpática.
"Carlos, certo?" perguntou Lúcio, consultando a
prancheta. "Morreu há pouco. Acidente de trânsito. Tinha 43 anos, duas
multas por excesso de velocidade e uma vida cheia de más decisões pequenas, mas
cumulativas."
Carlos piscou, ainda tentando processar tudo. "Espera
aí… Isso aqui é o Inferno?"
"Sim! Muito diferente do que você imaginava, né?"
Lúcio riu, dando um tapinha amigável nas costas de Carlos. "Vem, vou te
mostrar o lugar."
O demônio o conduziu através do saguão, onde outros
recém-chegados estavam recebendo instruções de demônios igualmente
mal-humorados ou, como Lúcio, ridiculamente amigáveis. Carlos ainda estava
esperando por algo terrível, mas até agora tudo parecia um pouco… normal
demais.
"Ok, então… Onde estão as chamas eternas, os gritos de
agonia e tudo mais?" Carlos finalmente perguntou, enquanto eles esperavam
o elevador.
"Ah, sim, essa é uma história engraçada!" Lúcio
sorriu. "Há muito tempo, uma pessoa veio parar aqui por engano. Era um
sujeito nervoso, muito impressionável. Ele deu uma espiada em uma das salas de
recreação, onde, por acaso, estavam torturando alguns condenados."
"Então é verdade! Há tortura aqui!" Carlos
exclamou, sentindo um misto de alívio e medo.
"Bem, sim… Mas essas pessoas eram masoquistas."
Lúcio deu de ombros. "Eles pediram por isso. Na verdade, a tortura é uma
forma de entretenimento para eles. Infelizmente, o cara que espiou não entendeu
bem a situação. Achou que todo mundo aqui sofria daquele jeito. Quando ele foi
mandado de volta por algum erro administrativo, espalhou a história sobre o
Inferno ser esse lugar horrível."
"Então… Não é?" Carlos perguntou, confuso.
"Depende do que você considera horrível," disse
Lúcio, enquanto as portas do elevador se abriam. Eles entraram e o demônio
apertou um botão que dizia "Átrio".
O elevador começou a descer, mas em vez de uma viagem
agonizante, foi uma descida suave, com música ambiente tocando baixinho. Quando
as portas se abriram, Carlos foi saudado por uma visão inesperada: um enorme
salão de festas, com mesas cheias de comida, música alta e demônios e humanos
dançando juntos. Um bar, no canto, estava cercado por clientes rindo e bebendo
cerveja, vinho, e até coquetéis coloridos.
"Bem-vindo ao Átrio Infernal!" anunciou Lúcio,
gesticulando amplamente. "É aqui que você pode relaxar entre as sessões de
tortura… quer dizer, atividades recreativas!"
Carlos piscou novamente, incapaz de acreditar no que via.
"Mas… Isso aqui é o Inferno!"
"E quem disse que o Inferno não pode ser
divertido?" Lúcio perguntou, já se dirigindo ao bar. "Afinal, você
está aqui para a eternidade. Não podemos deixá-lo entediado, certo?"
Ainda meio atordoado, Carlos seguiu Lúcio até o bar, onde um
barman, que mais parecia uma versão demoníaca de Tom Cruise, estava misturando
bebidas com uma habilidade impressionante.
"O que vai ser, Carlos? Cerveja? Algo mais forte?"
perguntou Lúcio, acenando para o barman.
"Cerveja," respondeu Carlos, quase por reflexo.
Enquanto esperava pela bebida, ele observou o ambiente ao
redor. Um grupo de demônios estava jogando pôquer em uma mesa ao lado, enquanto
em outra mesa, humanos pareciam estar participando de uma espécie de quiz show
infernal. Uma banda de jazz tocava ao fundo, dando ao lugar uma atmosfera de
clube noturno.
A cerveja chegou, gelada e espumante. Carlos a pegou com
mãos trêmulas e tomou um gole. Para sua surpresa, era deliciosa.
"Viu só? Não é tão ruim aqui, é?" Lúcio sorriu,
levantando sua própria caneca de cerveja para um brinde.
Carlos, ainda tentando processar tudo, brindou
automaticamente. "Eu… não sei o que dizer."
"Claro, claro. Demora um pouco para se acostumar,"
disse Lúcio, dando-lhe um tapinha no ombro. "Mas, veja, o Inferno é mais
sobre o que você faz dele. Tem algumas regras, é claro, mas nada de fogo e
enxofre o tempo todo. Quer dizer, você pode participar de uma sessão de tortura
se realmente quiser, mas, sinceramente, é mais para os masoquistas."
"E se eu… não quiser?" Carlos perguntou
cautelosamente.
"Bem, aí você fica aqui no Átrio, aproveitando a
cerveja, os jogos, as festas… Pode até se inscrever em algumas atividades
extracurriculares, como nosso campeonato de futebol infernal. É bem
competitivo!"
Carlos deu mais um gole na cerveja, sentindo-se um pouco
mais relaxado. "Então, tudo que ouvi sobre o Inferno estava errado?"
Lúcio deu de ombros novamente. "Depende. Para algumas
pessoas, o Inferno é exatamente o que elas acham que é. Mas para a maioria, é
só um lugar onde elas têm que lidar com as consequências de suas ações, mas sem
toda aquela dramaticidade que foi mal interpretada."
Eles ficaram em silêncio por um momento, Carlos ainda se
ajustando à ideia de que talvez passar a eternidade no Inferno não fosse tão
ruim assim. Lúcio, percebendo o estado confuso do recém-chegado, decidiu
ajudá-lo a se ajustar.
"Quer uma dica de como aproveitar ao máximo sua estadia
aqui?" Lúcio perguntou.
"Claro," Carlos respondeu, intrigado.
"Não leve as coisas muito a sério. Aqui no Inferno, o
pior inimigo é o tédio. Se você ficar obcecado com o que poderia ter feito
diferente, vai enlouquecer. Mas se aceitar as coisas como são e aproveitar o
que temos a oferecer, pode até se divertir."
Carlos ponderou sobre isso enquanto terminava sua cerveja. O
Inferno não era o que ele esperava, e isso era uma coisa boa. Claro, ele ainda
não sabia o que exatamente estava por vir, mas se o resto do Inferno fosse tão
acolhedor quanto o Átrio, ele poderia aguentar. E talvez, só talvez, aprenderia
a apreciar o lado mais inusitado da eternidade.
"Vamos, vou te mostrar os dormitórios," disse
Lúcio, levantando-se do banco do bar. "E não se preocupe, você terá sua
própria cama. Não é como nas prisões que você vê nos filmes."
Carlos sorriu pela primeira vez desde que chegara.
"Sabe, Lúcio, acho que posso acabar gostando daqui."
"Esse é o espírito!" Lúcio exclamou, piscando para
o barman enquanto se afastavam do bar. "Lembre-se, Carlos, o Inferno é o
que você faz dele. E com a atitude certa, pode até ser melhor do que algumas
das coisas que você enfrentou na vida."
Enquanto Lúcio guiava Carlos através de um corredor que se
estendia adiante, o som da festa no Átrio começava a se dissipar, dando lugar a
um silêncio confortável. O corredor era iluminado por tochas que, em vez de
chamas, tinham luzes de néon coloridas. As paredes eram decoradas com pinturas
que misturavam cenas de inferno clássico com toques surreais de arte moderna.
"Você disse que vou ter minha própria cama?"
Carlos perguntou, ainda um pouco cético. Ele esperava, no mínimo, dividir um
quarto com vários outros condenados em condições miseráveis.
"Exatamente!" Lúcio respondeu com um sorriso.
"Aqui no Inferno, acreditamos que, após uma vida de erros, todos merecem
um pouco de espaço pessoal para refletir e relaxar. A propósito, também
oferecemos camas com regulagem de firmeza, travesseiros anatômicos e até
lençóis com alta contagem de fios. Afinal, você vai ficar aqui por um bom
tempo."
Carlos riu, agora mais relaxado com toda a situação.
"Definitivamente, não era o que eu esperava."
"E o que você esperava? Queimar eternamente enquanto
demônios te cutucavam com tridentes?" Lúcio perguntou, com um olhar
divertido.
"Bom… sim. É o que dizem por aí."
Lúcio balançou a cabeça. "Esses rumores. A culpa é
daquela pessoa que espalhou a história errada. Na verdade, houve uma grande
reforma no Inferno há uns séculos. O pessoal de RH percebeu que o modelo antigo
de punição eterna não estava funcionando muito bem, então resolveram
inovar."
"Inovar?" Carlos perguntou, levantando uma
sobrancelha.
"Sim, algo mais… personalizado. Agora, o Inferno é como
um grande resort, mas com um toque de ironia. É claro que há certas atividades
obrigatórias, mas no geral, tentamos garantir que os condenados tenham uma
eternidade… suportável."
Eles chegaram a uma porta de madeira escura com o nome
"Carlos" gravado em uma placa dourada. Lúcio abriu a porta e
gesticulou para que Carlos entrasse.
O quarto era surpreendentemente acolhedor. Havia uma cama
grande, com lençóis impecavelmente brancos, um abajur ao lado da cama e até uma
TV de tela plana presa à parede. Um mini-bar estava abastecido com garrafas de
várias bebidas, e uma janela dava vista para um jardim lá embaixo, onde alguns
demônios cuidavam de plantas que pareciam… normais?
"Essa é sua nova casa," disse Lúcio, com um ar de
satisfação. "Fique à vontade. E se precisar de alguma coisa, basta usar o
telefone. Há serviço de quarto 24 horas, mas eu recomendo o sorvete de
chocolate demoníaco. É uma delícia!"
Carlos ficou parado por um momento, tentando absorver tudo
aquilo. "Lúcio, isso aqui é mesmo o Inferno?"
"Sim, sim!" Lúcio riu. "Eu sei, eu sei.
Parece mais um hotel cinco estrelas com uma temática infernal, mas acredite, há
desafios por aqui. Eles só não são tão óbvios quanto você esperaria."
"Como o quê, por exemplo?" Carlos perguntou,
sentindo uma leve pontada de preocupação.
Lúcio deu de ombros. "Bem, às vezes o Wi-Fi cai. E,
claro, o café da manhã continental nunca vem com bacon. Mas fora isso, acho que
você vai se adaptar bem."
Carlos riu, sentindo que talvez o "desafio" fosse
simplesmente aceitar que o Inferno era um lugar bem mais mundano do que a vida
o fez acreditar. Ele se jogou na cama, testando a maciez do colchão.
"Sabe, Lúcio, eu não esperava por isso. De verdade.
Pensava que ia sofrer, me arrepender eternamente… Esse tipo de coisa."
Lúcio suspirou, encostando-se à parede. "Sim, você e
todo mundo. Mas a verdade é que o sofrimento eterno não é produtivo. Os antigos
administradores do Inferno perceberam que não dava resultados. Então, eles
mudaram as coisas para algo mais… filosófico."
"Filosófico?" Carlos repetiu, confuso.
"Sim. Agora, o Inferno é mais sobre refletir sobre suas
ações, aprender com elas e, bem, fazer as pazes consigo mesmo. Às vezes, a
verdadeira tortura é apenas ser deixado sozinho com seus pensamentos, sem
distrações externas. Mas, como eu disse, é tudo muito personalizado."
Carlos ficou pensativo. "E se eu não quiser refletir? E
se eu só quiser aproveitar as comodidades?"
Lúcio sorriu. "Você pode tentar, mas eventualmente, a
necessidade de refletir virá. Faz parte da condição humana, ou pós-humana, eu
diria. E quando isso acontecer, estaremos prontos para ajudar. Mas, até lá,
aproveite seu tempo. Temos alguns eventos programados que talvez você
goste."
"Como o campeonato de futebol infernal?" Carlos
brincou, lembrando-se do comentário de Lúcio mais cedo.
"Exato!" Lúcio disse com entusiasmo. "E
também temos noites de karaokê, sessões de cinema infernal e até aulas de arte
com artistas que… bem, acabaram aqui por motivos variados."
Carlos riu novamente, mas desta vez de forma genuína.
"Sabe, Lúcio, você me pegou de surpresa. Acho que posso até me divertir
aqui."
Lúcio piscou um olho para ele. "Esse é o espírito,
Carlos! Agora, vou te deixar se instalar. Mais tarde, se estiver afim, podemos
ir ao bar novamente. Quem sabe você não descobre o prazer de uma boa cerveja
infernal?"
"Com certeza," Carlos disse, sentando-se na beira
da cama e olhando para o quarto aconchegante. "Acho que vou gostar
daqui."
Lúcio acenou e saiu do quarto, deixando Carlos sozinho. Ele
olhou ao redor, ainda tentando acreditar que aquele era o Inferno. Mas, de
alguma forma, parecia que ele tinha sido enviado para o lugar certo, afinal.
Mesmo que a eternidade fosse longa, pelo menos ele tinha um quarto confortável,
cerveja gelada e, claro, a oportunidade de finalmente entender o que era o
Inferno de verdade.
Ao se deitar na cama, Carlos deixou escapar um suspiro de
satisfação. Talvez o Inferno não fosse tão ruim assim. Talvez, com um pouco de
sorte, ele pudesse até achar uma maneira de aproveitar essa eternidade
inesperada. E com esses pensamentos, ele fechou os olhos, sentindo-se mais
relaxado do que em qualquer outro momento da sua vida… ou morte.
O telefone ao lado da cama tocou, e ele o pegou.
"Alô?"
"Sr. Carlos, aqui é da recepção. Estamos realizando uma
degustação de cervejas infernais no Átrio. Gostaria de participar?"
Carlos sorriu. "Com certeza, estarei lá em cinco
minutos."
Enquanto ele se levantava e se preparava para sair, um
pensamento passou pela sua mente. Talvez, ao contrário do que ele sempre ouviu,
o Inferno não fosse o fim do caminho, mas o começo de uma nova e estranha
aventura.
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