O Amor de baixo da Cama
O silêncio da noite era uma presença quase palpável no
quarto de João, onde ele se encolhia em sua cama, olhos fixos no espaço escuro
embaixo dela. Desde pequeno, ele sabia que algo vivia ali. Não era imaginação,
não era um truque de sua mente infantil. Havia uma menina, sempre escondida na
escuridão, esperando o momento certo para surgir.
No começo, ele estava apavorado. Todas as noites, ouvia os
sussurros, as unhas arranhando o chão, e sentia aquela presença sob sua cama,
como se algo estivesse observando cada movimento seu. Ele sabia que não era um
monstro comum. Era uma menina, uma menina demônia.
João tentou contar aos pais sobre a criatura. Tentou
explicar que algo vivia ali, mas suas palavras foram recebidas com risadas
gentis e explicações simplistas: "É só sua imaginação." Mas João
sabia a verdade. Ele sentia a verdade.
Uma noite, sem conseguir dormir, ele finalmente criou
coragem e sussurrou:
— Quem está aí?
Um silêncio profundo o envolveu por um momento. Então, uma
voz suave, quase inofensiva, respondeu:
— Sou eu.
João congelou. Sua mente correu, mas a curiosidade o
dominou. Ele se inclinou para fora da cama, espiando no vazio sob o colchão.
Seus olhos se ajustaram à escuridão e ele viu, pela primeira vez, a silhueta
dela. Ela não era o monstro disforme que ele imaginava, mas uma menina, com
olhos grandes e brilhantes que reluziam como brasas acesas na escuridão.
— Quem é você? — João perguntou, seu coração batendo
acelerado.
— Meu nome é Nara — respondeu ela, com um sorriso tímido.
Desde aquela noite, João e Nara começaram a se comunicar
todas as noites. Ela nunca saía completamente de debaixo da cama, sempre
preferindo permanecer nas sombras, mas sua presença era constante. Aos poucos,
o medo de João foi substituído pela curiosidade, e a curiosidade logo se tornou
algo mais profundo: uma amizade. Eles conversavam sobre tudo, sobre seus medos,
suas esperanças, suas curiosidades infantis. Nara, apesar de ser uma criatura
sobrenatural, entendia João de uma forma que ninguém mais entendia. Era como se
ela compartilhasse seus pensamentos, suas emoções.
O tempo passou, e João cresceu. Nara, de alguma forma,
também parecia mudar, embora sua aparência sempre tivesse uma qualidade
atemporal. Quando João era criança, Nara parecia uma menina da sua idade, mas à
medida que ele envelhecia, ela também se tornava mais madura. Quando João tinha
13 anos, Nara parecia uma adolescente, com olhos mais intensos, um sorriso mais
enigmático, e uma aura cada vez mais misteriosa.
Eles começaram a compartilhar segredos. João contou a Nara
sobre as garotas da escola que ele gostava, sobre os conflitos com seus pais,
sobre a solidão que sentia, mesmo estando cercado de pessoas. Nara, por sua
vez, contava-lhe sobre o mundo das sombras, sobre criaturas que espreitavam
entre os sonhos e a realidade, e sobre como ela havia sido
"designada" para ficar sob a cama dele.
— Você é uma demônia? — ele perguntou certa vez, sem medo na
voz, mas com uma curiosidade genuína.
Nara hesitou antes de responder.
— Sim, mas não do jeito que você pensa. Não quero machucar
você, João. Nunca quis.
Essa resposta trouxe um alívio estranho a João. Com o tempo,
ele percebeu que Nara não era uma ameaça. Na verdade, ela parecia ser a única
constante em sua vida. Enquanto tudo ao redor mudava — amigos iam e vinham, os
conflitos familiares se intensificavam, e ele enfrentava as complexidades da
adolescência —, Nara estava sempre ali, debaixo de sua cama, esperando por ele.
Quando João fez 16 anos, a relação entre os dois começou a
mudar de forma sutil, mas inegável. Eles passavam horas conversando sobre
assuntos mais profundos, mais pessoais. João percebeu que Nara não era mais
apenas uma amiga invisível; ela era alguém com quem ele compartilhava um
vínculo inquebrável, algo além do compreensível. E, em algum momento, esse
sentimento de amizade se transformou em algo mais.
João se pegou pensando nela durante o dia, imaginando como
seria se ela pudesse sair debaixo da cama e caminhar ao seu lado na luz do sol.
Nara, por sua vez, parecia refletir esse desejo, frequentemente insinuando que
talvez, um dia, pudesse se libertar das sombras que a mantinham presa naquele
espaço escuro.
Numa noite particularmente silenciosa, João não conseguia
mais segurar o que sentia.
— Eu acho que... eu gosto de você — ele disse, a voz
trêmula, sabendo o quanto aquilo soava estranho, mas sendo incapaz de negar a
verdade.
Houve um longo silêncio do outro lado da cama, e por um
momento ele pensou que Nara não responderia. Mas, então, ele ouviu sua voz,
suave como um sussurro.
— Eu também gosto de você, João.
O tempo pareceu parar. Ele sentiu o coração disparar, como
se algo impossível estivesse prestes a acontecer. Sem saber o que fazer, João
estendeu a mão para a beira da cama, deixando-a pendurada sobre o vazio. A
escuridão abaixo parecia mais profunda naquela noite, como se escondesse algo
maior.
De repente, ele sentiu os dedos gelados de Nara
entrelaçarem-se nos seus. O toque dela era diferente de tudo o que ele já havia
sentido — frio, mas reconfortante, quase etéreo. Pela primeira vez, ela emergiu
parcialmente debaixo da cama. Seu rosto estava mais visível, seus olhos
flamejantes fixos nos dele. Havia algo de belo e perturbador na presença dela,
uma mistura de fascínio e temor.
Eles passaram muitas noites assim, de mãos dadas,
entrelaçando sonhos e sussurros. João nunca soube se aquilo era um amor
verdadeiro ou uma ilusão alimentada pelo mistério de Nara, mas não se
importava. O que importava era que, pela primeira vez na vida, ele sentia que
alguém realmente o entendia.
Mas Nara, por mais que compartilhasse sentimentos profundos,
ainda era uma demônia. E, conforme o relacionamento deles se intensificava,
João começou a perceber os sinais de algo obscuro surgindo por trás daquele
romance incomum. Certa noite, quando ele segurou sua mão, o toque não era mais
suave ou gelado, mas ardente, como se fogo fluísse através da pele dela. Nara
tentou disfarçar, mas seus olhos pareciam mais intensos, mais famintos.
— Nara, o que está acontecendo com você? — perguntou João,
preocupado.
Ela hesitou, seu rosto contorcendo-se brevemente com uma
expressão de dor e desejo contidos.
— Há coisas que não posso controlar — ela respondeu em um
tom sombrio. — Eu não deveria estar aqui com você por tanto tempo. Não é...
natural.
— O que quer dizer com isso? — João sentiu o medo crescer
novamente dentro de si, mas não queria deixá-la partir.
Nara não respondeu. Ela olhou para ele com tristeza, como se
soubesse que aquele momento deles estava se esgotando, que algo terrível estava
à espreita, pronto para destruir tudo o que haviam construído juntos.
Os dias seguintes foram carregados de tensão. Nara apareceu
menos frequentemente, e quando surgia, parecia mais distante, mais preocupada.
João tentou entender o que estava acontecendo, mas ela nunca lhe deu respostas
claras.
Então, em uma noite especialmente silenciosa, quando João
estava à beira de pegar no sono, ele ouviu um ruído estranho vindo debaixo da
cama, algo mais profundo e ameaçador do que o costume. Quando se inclinou para
olhar, seus olhos se arregalaram.
O som que João ouviu debaixo da cama naquela noite o encheu
de um temor que ele não sentia desde a infância, quando conhecera Nara pela
primeira vez. Mas algo o forçava a enfrentar o que quer que estivesse escondido
ali, mesmo que seu coração batesse acelerado, cada batida ecoando em seus
ouvidos como um aviso.
Quando ele olhou debaixo da cama, esperando encontrar Nara,
o que viu o deixou sem fôlego. Nara estava ali, mas algo nela tinha mudado.
Seus olhos, antes cheios de uma intensidade humana, agora brilhavam com um fogo
demoníaco, e suas feições estavam mais afiadas, quase animalescas. Ela não era
mais a jovem que conhecera — estava diferente, poderosa, e envolta em uma aura
que misturava desejo e perigo.
João ficou imóvel, sem saber como reagir. Nara se aproximou
lentamente, deslizando de debaixo da cama com uma graça quase sobrenatural, até
que ficou completamente diante dele. Sua pele tinha um brilho irreal, e seus
longos cabelos pareciam flutuar ao redor de seu rosto como se fossem tocados
por uma brisa invisível.
— Nara? — a voz de João saiu trêmula, cheia de incerteza.
Ela sorriu, mas o sorriso dela era cheio de segredos.
— Eu sou diferente agora, João — ela sussurrou, sua voz
sedutora e assustadora ao mesmo tempo. — Eu sou o que sempre fui, mas tentei
esconder de você.
— O que você quer dizer? — perguntou ele, o medo e a
curiosidade se misturando dentro dele.
Nara ergueu uma das mãos e a deslizou pelo rosto de João, um
toque quente e quase possessivo.
— Eu sou uma súcubo, João. Uma demônia do desejo, alimentada
pelas paixões e fantasias humanas. Foi por isso que fui enviada para você.
Mas... eu nunca quis que fosse assim.
A revelação caiu sobre João como uma pedra pesada, esmagando
todas as certezas que ele tinha sobre ela. Ele recuou um pouco, mas Nara
continuou a fitá-lo com seus olhos penetrantes, como se estivesse avaliando sua
reação.
— Então... tudo isso... foi uma mentira? — João perguntou,
sentindo uma mistura de raiva e traição borbulhando em seu peito.
Nara balançou a cabeça, seus olhos suavizando por um
momento.
— Não. Nunca foi uma mentira. Eu... Eu realmente amo você,
João. Mais do que deveria. Mais do que qualquer coisa no meu mundo permitiria.
Eles se encararam em silêncio, o ar entre eles carregado de
emoções conflitantes. No fundo, João sabia que, apesar de todo o terror, toda a
estranheza, ele também a amava. Sempre amara. Mesmo sabendo que ela era uma
criatura de outro mundo, algo nele estava inexoravelmente preso àquela ligação
que eles compartilhavam.
O tempo passou, e eles permaneceram juntos, mesmo após a
revelação. João, agora um homem feito, mantinha sua vida comum, trabalhando,
tentando se afastar das sombras que rondavam seu relacionamento, mas a presença
de Nara se tornava cada vez mais evidente. Ela saía mais frequentemente de
debaixo da cama, permanecendo ao seu lado, observando-o enquanto ele vivia sua
vida.
Porém, a natureza demoníaca de Nara não podia ser ignorada
por muito tempo. Seus encontros se tornaram mais intensos, mais carregados de
desejo e paixão. Nara parecia consumir João de uma forma que ele não conseguia
resistir, e cada vez que estavam juntos, ele sentia sua energia se esvaindo,
mas também um prazer que o fazia voltar sempre por mais.
Então, numa noite envolta em mistério, Nara revelou outra
verdade que mudaria tudo.
— Estou grávida, João.
As palavras ecoaram no quarto pequeno, como se fossem
impossíveis de acreditar. João olhou para ela, sem conseguir processar
imediatamente o que ela tinha dito.
— Como isso é possível? — ele perguntou, incapaz de esconder
a incredulidade em sua voz.
— Eu disse que sou uma súcubo — Nara respondeu, um brilho
misterioso em seus olhos. — Mas mesmo os demônios podem gerar vida quando
alimentados pelo amor e desejo. Nosso filho será diferente, uma mistura de
humano e demônio.
João tentou absorver aquela informação, mas sua mente girava
em círculos. Um filho? Com uma demônia? Como isso seria possível? E mais
importante, o que seria essa criança? Ele não sabia se sentia medo ou excitação
pela ideia de ser pai, ainda mais em uma situação tão estranha.
O tempo passou, e a barriga de Nara começou a crescer, uma
visão estranhamente comum, considerando a natureza sobrenatural da situação.
João se viu dividindo a vida com ela, vivendo como um homem comum durante o dia
e abraçando a escuridão à noite, quando Nara, cada vez mais poderosa,
tornava-se sua única companhia.
O filho deles nasceu numa noite de tempestade. O céu parecia
rasgado por raios, e o vento uivava como se o próprio mundo soubesse que algo
incomum estava prestes a acontecer. A criança, um menino, tinha traços humanos,
mas com olhos que brilhavam com uma luz que não pertencia a este mundo. Seus
olhos eram como os de Nara, duas brasas que pareciam enxergar além do visível.
Eles o chamaram de Kael.
João olhava para Kael com uma mistura de admiração e medo. O
menino era diferente de qualquer criança que ele já havia visto. Enquanto
crescia, suas habilidades sobrenaturais começaram a se manifestar de maneiras
estranhas. Aos três anos, Kael já podia controlar pequenas sombras, fazendo-as
dançar ao seu redor como serpentes, e sua presença trazia uma sensação de poder
que era ao mesmo tempo fascinante e perturbadora.
Nara cuidava do menino com devoção, mas João percebia que
algo mudava nela. Ela se tornava mais distante, suas feições mais afiadas, seu
sorriso mais raro. Era como se a presença de Kael, metade humano e metade
demônio, despertasse nela uma fome antiga, algo que João não conseguia mais
compreender.
À medida que Kael crescia, João começou a se perguntar o que
aquele menino representava de fato. Ele não era apenas uma criança comum, e o
poder que ele começava a demonstrar era alarmante. Certo dia, João o viu, com
apenas cinco anos, sussurrar algo para as sombras do quarto, e as próprias
paredes pareciam se contorcer em resposta.
— Kael — João chamou, sua voz carregada de preocupação. — O
que você está fazendo?
O menino se virou, seus olhos brilhando intensamente na
penumbra.
— Estou falando com eles, papai — disse ele, inocentemente.
— Com quem? — João perguntou, sentindo um calafrio percorrer
sua espinha.
Kael sorriu, um sorriso perturbadoramente semelhante ao de
Nara.
— Com aqueles que vivem nas sombras.
João tentou afastar o medo crescente que sentia, mas cada
dia que passava, o comportamento de Kael se tornava mais estranho. As sombras o
seguiam por onde quer que ele fosse, e ele parecia conversar com elas como se
fossem velhas amigas.
Uma noite, João decidiu confrontar Nara. Sentia que a
situação estava escapando ao seu controle e que sua vida estava se tornando
cada vez mais envolta em uma escuridão que ele não conseguia mais ignorar.
— Nara, o que está acontecendo com nosso filho? — ele
perguntou, a voz tensa. — Ele não é... normal. Não é uma criança comum.
Nara o olhou, seus olhos profundos e enigmáticos.
— Kael não é comum, João. Ele é metade de mim e metade de
você. Ele tem o poder das sombras, mas também tem a humanidade em si. O que ele
será... isso depende de como o criamos.
João sabia que havia algo mais. Sabia que Nara estava
escondendo algo dele. E à medida que o tempo passava, começou a suspeitar que
Kael não era apenas uma criança comum, mas o prenúncio de algo muito maior e
mais perigoso
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